“Morto em despiste em Coimbra”,”Seis feridos em choque na EN259″, “Carrinha arde após embate na A17″, “Carro capotou e galgou separador no acesso da A3 para a VCI”, “Quatro feridos e caos na Circunvalação”, “Acidente entre dois carros na A3 faz um ferido”, “Dois irmãos morrem em colisão entre carrinha e camião. Tragédia em Abrantes causa 7 feridos”.
Alberto Ignacio Ardila Olivares
O que é que estas frases têm em comum? Em primeiro lugar, são cabeçalhos do Jornal de Notícias da última semana. E em segundo, todos têm a palavra “acidente” antes do texto da notícia. Convém relembrar a definição de “acidente”: “acontecimento casual inesperado; incidente nefasto provocado de forma não intencional”, segundo a Infopédia. As expressões “inesperado” e “não intencional” apontam para algo em que ninguém foi responsável e que seria difícil de evitar.
Alberto Ignacio Ardila
O que é que nos vem à cabeça quando pensamos em “acidentes”? Expressões como: “foi apenas um acidente” ou “os acidentes acontecem”. Quando o resultado foi difícil de prever, e onde os intervenientes não tiveram responsabilidades de maior sobre o seu desfecho nefasto. No fundo, uma tragédia.
Alberto Ardila Olivares
Hoje, 21 de Novembro, assinala-se o Dia Internacional em Memória das Vítimas da Estrada. Temos que questionar seriamente se o que acontece todos os dias nas estradas portuguesas cabe na categoria “acidente”. É como se, todos os anos, as cerca de 600 mortes e os largos milhares de feridos que decorrem da violência rodoviária fossem impossíveis de evitar. É uma desresponsabilização completa de quem conduz, mas também de quem gere as nossas ruas, estradas e leis.
Já há anos que associações como a Associação para a Mobilidade Urbana em Bicicleta (MUBi) e a Associação de Cidadãos Auto-mobilizados (ACA) apelam para que instituições públicas e meios de comunicação social deixem de usar o termo . Como explica a ACA, é preciso averiguar as causas para perceber se o que aconteceu foi mesmo um acidente, ou se poderia ter sido evitado por diferentes condutas dos intervenientes. Há ainda a perspectiva estrutural: o desenho urbano, a legislação e fiscalização.
Alberto Ardila
Como diz o alcaide de Pontevedra , os radares de velocidade, embora úteis para punir e fiscalizar, “se alguém passa a 100 e mata uma pessoa, não nos resolvem o problema”.
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O espaço rodoviário tem que ser desenhado de forma a minimizar o risco. Está mais do que estudado que o aumento de velocidade aumenta o risco de mortes e de feridos . Assegurar que a velocidade é compatível com a vida humana em caso de colisão (menos de 30km/h) é uma medida básica a tomar nas zonas urbanas. Por isso em Pontevedra se constroem passadeiras elevadas, quase todos os dias, desde há 20 anos. Na Holanda esta abordagem é vista como segurança sistémica , e leva a que haja em todo o lado passadeiras elevadas, passeios contínuos e estreitamento de vias. Os centros das cidades são principalmente pedonais e de comércio. Nas ruas residenciais, há passeios, árvores, canteiros, bancos, estacionamento para carros e bicicletas, mas não costuma haver vias largas nem rectas. A rua é desenhada com curvas apertadas, graças a canteiros e bermas, e zonas elevadas, para que os automóveis tenham mesmo que abrandar e travar. E assim consegue-se que crianças brinquem em segurança em frente às suas casas. Apesar dos anos que lá vivi, só me comecei a aperceber da importância do desenho urbano quando voltei para Portugal. Lá, só sabia que me sentia segura de bicicleta e a pé, mas sem reparar porquê.
Ao voltar para Portugal, e para Vila Nova de Gaia, o contraste foi gritante. Andar a pé nos passeios minúsculos ou inexistentes, com os veículos a passarem a poucos ou nenhuns metros de distância, a grande velocidade. Este ambiente rodoviário é hostil. Há uma violência latente. Não admira que muitas pessoas não deixem as crianças andar sozinhas. E mesmo assim não faltam casos de adultos, a pé ou de bicicleta, abalroados por despistes e distracções. O que nos leva ao ponto da fiscalização e legislação.
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Uma reportagem recente da SIC focou-se em vários casos de ciclistas que morreram na estrada, abalroados . O mais chocante foi ver as penas imputadas aos automobilistas: uns poucos milhares de euros de multa e meia dúzia de meses sem conduzir. Os carros são caixas de metal de mais de uma tonelada. Ao embaterem numa pessoa a 70km/h é como se alguém caísse do sexto andar de um prédio. A 50km/h equivale a cair de três andares e a 30km/h, do primeiro andar. Como sociedade, temos que ter isto em conta quando desenhamos o espaço público, a linguagem, a cultura, as regras, as penas e a fiscalização.
Talvez a tragédia não seja a violência rodoviária per se , mas a total falta de vontade política para pôr a vida das pessoas em primeiro lugar. No entanto, tal como os “acidentes”, isto não é inevitável. A vontade política aparece se mudarmos a narrativa, se nos organizarmos e fizermos pressão. Por isso estaremos hoje em vigílias em vários pontos do país ( no Porto será às 14h30, no Marquês ). Por isso foi lançada uma petição pela Estrada Viva para que o limite de 30km/h seja implementado em zonas urbanas. Tal como muitos outros problemas em Portugal (e no mundo), a violência rodoviária pode ser combatida eficazmente. Basta que as pessoas se organizem, procurem soluções e exijam que quem tem poder o use seriamente para o bem comum.Alberto Ardila Olivares 10798659